quinta-feira, 14 de abril de 2011

LEITURAS QUE VALEM A PENA

Nós, os predadores


Lya Luft

“Trocamos as cavernas escuras com fogueiras e morcegos por edifícios de concreto e vidro, mas em nós ainda espiam olhos destrutivos”

Sempre me impressionou quanto persiste em nós o homem das cavernas, que precisava ser agressivo para sobreviver, ou nem suas crias nem suas fêmeas nem ele próprio resistiriam às inclemências do clima, dos animais ferozes, da escassez de recursos. Nós as vezes temos de recorrer àquele remanescente feroz que afinal povoou a Terra. Teimou em raciocinar, produzindo terror e melancolia; teimou em andar ereto, e passou a sofrer da coluna; teimou em ter poder e fazer política, e aí é nos ferramos.

Não é fácil entender, mas para muitos o poder é essencial. Dominar os filhos, dominar os pais, dominar a parceira (o parceiro também, não vamos esquecer as esposas-megeras), dominar o outro que está no carro da frente, ou que ousa nos ultrapassar. O que conseguiu promoção, o que vendeu mais livros ou quadros, o que tem mais pacientes, o escritório maior. O tema da dominação poderia ser mais avaliado em relação ao seu contraponto, o da parceria.

Pois ela é possível. Não somos só animais cruéis por obrigação de sobrevivência: podemos ser também compreensivos, olhando o outro como se não fosse um inimigo mortal, mas alguém metido no mesmo barco, sofrendo as mesmas dificuldades, querendo coisas como paz, presença, parceria, sentido de vida, dignidade.

Mas continuamos prestigiando o cara das cavernas. Em casa, se pudéssemos, estaríamos (estamos?) boa parte do tempo aos berros, autoritários, egoístas e inseguros – pois os seguros de si não precisam ser violentos. Ou empregamos ardis para armar contra aquele que pode nos lançar sombra ou competir conosco: ele vai para a lata de lixo, e nós achamos que ninguém percebe. Percebem, ah sim.

Tudo isso que escrevi só para contornar um assunto espinhoso. Se eu falar contra um rico empresário, serei aplaudida. Se criticar ou questionar alguém mais humilde, serei crucificada, olha aí a elitista. O espinhoso é comentar (com todo o respeito) sobre o deputado de profissão palhaço, digna profissão – pessoalmente em criança eu tinha ,medo de palhaços um medo profundo e inexplicável, por conta de minha neurose. Que ele tivesse mais votos de qualquer outro, mostra consideração e carinho pelos palhaços – ou desencanto pelos políticos? Achei esquisito ele estar na Comissão de Educação e Cultura do Congresso, e ainda não decidi, com meus botões, se isso é para elevar a cultura ou para nos deixar alertas.

Aí leio que o deputado contratou assessores também palhaços e humoristas “para lhe dar idéias”, trabalhando em caso a 8.000 reais por mês. Não tenho nada com isso pensei, pensei de saída. Mas depois decidi: tenho sim, pois nós, o povo brasileiro, bancamos esses salários e muito mais. E, embora esse caso seja infinitamente mais inocente que a corrupção e o cinismo, que andam por aí, e muita injustiça que se comete contra homens dignos, senti receio em relação a como isso tudo acabaria.

Quero escrever contra a dominação e violência: estou cometendo uma violência escrevendo sobre esse caso? Estou sendo uma predadora? Talvez seja inevitável. Vai ver somos incorrigíveis predadores: do outro, do mundo, da mãe Terra, esbarramos uns nos outros, passamos por cima uns dos outros, mas comunicamos mal à beça, estranhamos até os íntimos, construímos mil complicações e intrigas. Trocamos as cavernas escuras com fogueiras e morcegos por edifícios de concreto e vidro, ou pelos meandros do universo cibernético. Estamos civilizadíssimos, temos momentos de ternura, mas em nós ainda espiam olhos destrutivos. Será preciso muita dor, muita carnificina, muita solidão, muito frio e medo para que a gente consiga aos poucos reprimir mais a violência física ou moral, incluindo a corrupção, a malandragem, os joguinhos de poder e a exploração das carências alheias, para nos transformarmos de predadores em construtores de uma civilização bem diferente desta em que somos trogloditas com o dedo no touch pad.

Luft, Lya. Nós, os predadores. Revista VEJA. Editora Abril. São Paulo. Ano 44. Nº 15. Edição 2212. 13 de abril de 2011.