quarta-feira, 4 de abril de 2012

A tomografia do poder

Carlos Heitor Cony

Ali Abn Beroel pulou o muro da casa de Mustafá Tarak para roubar gansos que viviam no jardim mais suntuoso de Bagdá. Ali Abn caiu e quebrou a perna. Foi se queixar ao Califa. “Sombra de Alá na Terra! O rico mercador Mustafá Tarak ergueu um muro tão alto para proteger seu jardim que eu, indo roubar os seus gansos, cai e quebrei a perna. Mustafá deve ser enforcado!”.

O Califa mandou chamar Mustafá, repetiu a queixa do ladrão e ouviu a desculpa: “Luz enviada por Alá para iluminar o mundo! A culpa é do mestre de obras, que ergueu o muro mais alto do que o combinado. Gastou tanto o meu dinheiro que cai na miséria!”

O mestre de obras foi chamado pelo Califa, que o culpou de ter quebrado a perna de Ali Abn e ter falido Mustafá Tarak. Mas o acusado explicou: “Pai de todos os crentes! Eu ia erguer o muro pela metade, mas certa manhã vi a formosa Fátima, filha de Mustafá, dando comida aos gansos. Aumentei o muro para que pudesse ver mais e melhor. Por causa dela, gastei demais e perdi o emprego. Ela deve ser afogada no Eufrates!”. A Fátima foi chamada e ia ser afogada no Eufrates por ter desempregado o mestre, falido o pai e quebrado a perna do ladrão. Mas ela contou: “Pedaço da lua crescente! Todas as manhãs preciso dar comida aos meus gansos!”.

O Califa, sombra de Alá na Terra, Pai de todos os crentes, Pedaço da lua crescente, mandou matar todos os gansos da filha de Mustafá. Não sei se inventei essa história ou li coisa parecida em qualquer canto.

É a tomografia computadorizada do poder, em cujas entranhas todos entregam todos e pedem castigo para punir os erros dos outros, inclusive a corrupção. Quem paga tudo são os gansos, que somos todos nós.



CONY, Carlos Heitor. Tomografia do poder. Jornal DIÁRIO DO PARÁ. Caderno Brasil. Pág. B2. 01.04.2012. Belém – Pará.

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