domingo, 16 de janeiro de 2011

Nem tudo se pode ver, ouvir ou dizer



Iwazaru, Mizaru e Kikazaru

“Seleção e contenção tornam a existência mais fácil quando 
vêm do desejo vital de se opor às forças do inconsciente que
podem nos fazer mal”
Betty Milan



Um músico me escreve contando que pertence a uma grande orquestra, mas não tem prazer no trabalho por causa dos colegas. Não suporta o despotismo, a vaidade, a prepotência, arrogância e a mania de grandeza de alguns. O convívio com “egos inflados”  é demasiadamente penoso, e ele me pergunta o que fazer.
Eu, que sempre faço a apologia do ato generoso da escuta, sugiro ao músico que faça ouvidos mouco. Lembro que ele tem o privilégio de escutar os sons mais sutis e saber ouvir o silêncio. Não precisa dar ouvidos ao que não interessa. Inclusive porque egos inflados estão em toda a parte e a luta contra eles não leva a nada. Evitar a luta de prestígio é um bem que fazemos a nós e aos outros.
Para viver, nem tudo nos podemos ver, escutar ou dizer. Isto é representado desde a antiguidade, pelo três macacos da sabedoria. Cada um cobre uma parte diferente do rosto com as mãos. O primeiro cobre os olhos, o segundo as orelhas e o terceiro a boca. A representação e originária da China. Foi introduzida no Japão, no século VIII, por um monge budista. A máxima que ela implica é “não ver, não ouvir e não dizer nada de mau”. Foi adotada por Ghandi, que levava sempre consigo os três macaquinhos, o cego, o surdo e o mudo – Mizaru, Kikazaro e Iwazaru.
Eles ensinam a não enxergar tudo o que vemos, a não escutar tudo o que ouvimos e não dizer tudo o que sabemos. Noutras palavras, ensinam a selecionar e a conter-se. Isso é decisivo para uma atitude construtiva, mas não é fácil. Somos impelidos a focalizar o que nos prejudica – impelidos por um gozo masoquista ao qual temos de nos opor continuamente. Só a consciência disso permite não sair do caminho em que a vida desabrocha.
Seleção e contenção tornam a existência mais fácil. Desde que não seja um efeito da repressão, como na educação tradicional, e sim do desejo do sujeito – um desejo vital de se opor às forças do inconsciente que podem nos fazer mal. Isso implica a humildade de aceitar que o inconsciente e nós não somos donos de nós mesmos.
A idéia não é nova. Data da descoberta da psicanálise por Freud, no fim do século XIX, mas continua a ser ignorada porque é difícil nos livrarmos do ego. Sobretudo numa sociedade como a nossa, que tanto valoriza, e que não condena a vaidade, a prepotência e a arrogância. Pelo contrário, estimula-as a se perpetuar.
MILAN, Betty. Nem tudo se pode ver, ouvir ou dizer. Editora Abril. Revista Veja, edição 2199, ano 44, nº2, 12.01.2011, pág. 92. São Paulo - SP.

Nenhum comentário:

Postar um comentário