A
defesa de José Dirceu, cassado por corrupção pela Câmara dos Deputados e
condenado por corrupção ativa e formação de quadrilha pelo Supremo Tribunal
Federal, encaminhou à Corte um pedido de redução de pena. O argumento
principal: o “relevante valor social” do rapaz. O memorial, assinado por José
Luís Oliveira Lima e Rodrigo Dall’Acqua, vejam vocês!, traz um série de
depoimentos atestando que Dirceu lutou contra a ditadura e ajudou a
democratizar o Brasil. Um dos que asseveram os valores do condenado é… Luiz
Inácio Lula da Silva — que pode vir a ser, ele próprio, a depender das
circunstâncias, um réu do mensalão.
Então
fica combinado assim: ter lutado contra o regime militar, não importam a
qualidade dessa luta e os meios empregados, não só dá direito à Bolsa Ditadura
como também a uma espécie de “bônus” penal. Se esses novos varões de Plutarco
se tornam corruptores e quadrilheiros, esse passado meritório deve ser levado
em conta. É um acinte à inteligência e ao bom senso no mérito e, como diriam os
ministros do Supremo, “na espécie”. Ademais, que história é essa de Dirceu
pedir clemência a um tribunal que ele despreza? O nome disso é covardia!
Vamos
ao mérito. Ao dosar as penas de um condenado, é claro que um juiz pode e deve
levar em conta o seu passado, mas isso não se confunde com o viés evocado pela
defesa de Dirceu. Se for réu primário — não tiver sido apenado antes —, com
bons antecedentes, o condenado tende a receber uma punição mais branda; se o
contrário, então mais dura. Com a devida vênia, a defesa de Dirceu tenta
perverter esse fundamento, emprestando-lhe um viés militante, ideológico, quiçá
partidário. Digam-me aqui: um outro no lugar de Dirceu, sem o seu passado de
supostas glórias, deveria, então, receber uma pena maior do que a dele?
Até
onde acompanho, o passado distante e o recente de Dirceu, no que concerne à
sanção moral ao menos, deveriam ser usados como agravantes. Na juventude,
diz-se, lutou contra a ditadura e o estado autoritário. Desde a juventude,
pois, entende o significado do embate político e conhece suas balizas. Em
tempos mais próximos, foi nada menos do que o segundo homem da República.
Bastava estalar os dedos para que a máquina fosse posta à sua disposição.
Justamente porque tinha tão grandes e tão graves responsabilidades; justamente
porque concentrava tanto poder e podia mover tantas vontades, seus crimes se
tornam especialmente graves.
Agora
algumas considerações sobre o caso em espécie. José Dirceu — e já conversei com
alguns contemporâneos seus — se especializou em adensar a própria biografia.
Nunca foi um líder destemido, e disso todo mundo sabe. Mas não quero me perder
nesse particular. Uma coisa é certa: a democracia que temos não lhe deve uma
vírgula. Quando tentou criar um movimento à cubana no Brasil, com o seu “Molipo”
(Movimento de Libertação Popular), estava em busca de democracia? Viria daí a
sua “relevância social”?
O
curioso é que essa linha de defesa já foi testada no tribunal pelo advogado de
José Genoino, condenado por corrupção ativa (9 a 1) por um placar ainda mais
amplo do Dirceu (8 a 2). Os ministros deixaram claro que seu passado não estava
em julgamento. Alguns até deram a entender que, se estivesse, talvez fosse um
bônus. Pegar em armas com o objetivo de instaurar uma ditadura comunista num
país é uma dessas glórias que ainda estão para ser demonstradas, não é mesmo?
Agora
a covardia
Dirceu
já emitiu uma nota pública afirmando ter sido vítima de um julgamento de
exceção. Sustenta que o STF o condenou sem provas. Na sustentação oral que fez,
seu advogado afirmou que sua eventual condenação seria um “ousado” ataque ao
estado de direito. Muito bem! Como é que Dirceu pode pedir clemência a um
tribunal de cujos critérios ele desconfia? Como pode pedir clemência a um
tribunal que estaria a conduzir um julgamento de exceção? Trata-se de uma
contradição inelutável, não é mesmo?
Nessas
horas, sempre lembro do Canto VIII do poema “I Juca Pirama”, de Gonçalves Dias.
Alguns ex-alunos meus que andam por aí — de vez em quando, um deles me acha e
se manifesta; felizmente, sempre para o bem — devem se lembrar de como eu
gostava de dar aula sobre esse texto.
Reproduzo
o trecho em que o pai deplora e amaldiçoa o filho que, feito prisioneiro, pediu
clemência à tribo inimiga. E olhem que o jovem índio o havia feito por amor ao
pai, para cuidar dele na velhice. Mas não se brinca com a honra nesses casos,
disse o velho. Sabem cumé… Gonçalves Dias era um poeta romântico…
VIII
“Tu choraste em presença da morte?
“Tu choraste em presença da morte?
Na presença de estranhos choraste?
Não descende o cobarde do forte;
Pois choraste, meu filho não és!
Possas tu, descendente maldito
De uma tribo de nobres guerreiros,
Implorando cruéis forasteiros,
Seres presa de vis Aimorés.
“Possas tu, isolado na terra,
Sem arrimo e sem pátria vagando,
Rejeitado da morte na guerra,
Rejeitado dos homens na paz,
Ser das gentes o espectro execrado;
Não encontres amor nas mulheres,
Teus amigos, se amigos tiveres,
Tenham alma inconstante e falaz!
Sem arrimo e sem pátria vagando,
Rejeitado da morte na guerra,
Rejeitado dos homens na paz,
Ser das gentes o espectro execrado;
Não encontres amor nas mulheres,
Teus amigos, se amigos tiveres,
Tenham alma inconstante e falaz!
“Não encontres doçura no dia,
Nem as cores da aurora te ameiguem,
E entre as larvas da noite sombria
Nunca possas descanso gozar:
Não encontres um tronco, uma pedra,
Posta ao sol, posta às chuvas e aos ventos,
Padecendo os maiores tormentos,
Onde possas a fronte pousar.
Nem as cores da aurora te ameiguem,
E entre as larvas da noite sombria
Nunca possas descanso gozar:
Não encontres um tronco, uma pedra,
Posta ao sol, posta às chuvas e aos ventos,
Padecendo os maiores tormentos,
Onde possas a fronte pousar.
“Que a teus passos a relva se
torre;
Murchem prados, a flor desfaleça,
E o regato que límpido corre,
Mais te acenda o vesano furor;
Suas águas depressa se tornem,
Ao contacto dos lábios sedentos,
Lago impuro de vermes nojentos,
Donde festas como asco e terror!
Murchem prados, a flor desfaleça,
E o regato que límpido corre,
Mais te acenda o vesano furor;
Suas águas depressa se tornem,
Ao contacto dos lábios sedentos,
Lago impuro de vermes nojentos,
Donde festas como asco e terror!
“Sempre o céu, como um teto
incendido,
Creste e punja teus membros malditos
E o oceano de pó denegrido
Seja a terra ao ignavo tupi!
Miserável, faminto, sedento,
Manitôs lhe não falem nos sonhos,
E do horror os espectros medonhos
Traga sempre o cobarde após si.
Creste e punja teus membros malditos
E o oceano de pó denegrido
Seja a terra ao ignavo tupi!
Miserável, faminto, sedento,
Manitôs lhe não falem nos sonhos,
E do horror os espectros medonhos
Traga sempre o cobarde após si.
“Um amigo não tenhas piedoso
Que o teu corpo na terra embalsame,
Pondo em vaso d’argila cuidoso
Arco e frecha e tacape a teus pés!
Sé maldito, e sozinho na terra;
Pois que a tanta vileza chegaste,
Que em presença da morte choraste,
Tu, cobarde, meu filho não és.”
Que o teu corpo na terra embalsame,
Pondo em vaso d’argila cuidoso
Arco e frecha e tacape a teus pés!
Sé maldito, e sozinho na terra;
Pois que a tanta vileza chegaste,
Que em presença da morte choraste,
Tu, cobarde, meu filho não és.”
Por
Reinaldo Azevedo
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