quinta-feira, 25 de outubro de 2012

VISEU E SEUS ENCANTOS: Vale a pena conhecer


A ILHA ENCANTADA – A Pedra Grande do Gurupi

Marcondes Lima da Costa[1]

Na desembocadura do rio Gurupi, na fronteira Pará-Maranhão, existem inúmeras ilhas e uma delas e muito distinta das demais, é uma ilha de pedra, uma pedra escura exótica, que emana daquele mundo de água, tendo em sua retaguarda o verde da floresta de mangue e o branco das praias e bancos de areia. É a Pedra Grande do Gurupi. Como se percebe o seu nome é uma direta alusão a sua constituição em pedra, e pedra grande, e a sua localização junto a desembocadura do rio Gurupi. As outras ilhas são bancos de areia e lama. A Pedra Grande já havia sido até local para farol de navegação. Seus escombros antes de ir para lá quando de nossa ultima visita nos anos de 1980. A ilha-pedra tem 160 m de comprimento e na maré fica cercada de bancos de areia. Seu topo é plano, com algumas touceiras de gramíneas resistentes ao sol, ondas e água salina, a tão propalada e temida maresia. A superfície é plana e rugosa, cheia de cavidades e caldeirões. Nestes podem acumular água do mar, que deixa o fundo cravejado de belos cristais milimétricos e cúbicos de halita, NaCl, o sal de cozinha, formados pela evaporação da água. A água do mar chega até o topo através do quebramento das ondas, projetando-a para cima. Esses mesmos cristais de halita também são encontrados em cavernas desenvolvidas nas paredes da ilha, particularmente em uma delas, um verdadeiro refúgio ou abrigo. Suas paredes de crosta são revestidas com cristais e agregados de gipso, um sulfato de cálcio hidratado, CaSO4 .H2O, além de halita. Mas a Pedra Grande do Gurupi é uma rocha incomum, estranha na região. Tem cor avermelhada e marrom, mas que está enegrecida superficialmente por liquens e intempéries em geral. Sob esta película escura se destaca uma rocha (termo geológico para a pedra) de aspecto pisolítico (formado por componentes esféricos ou esferolíticos com camadas concêntricas) a brechóide (como se estivesse toda quebrada). Os esferolitos e fragmentos têm cor marrom a vermelha e são envolvidos por material de cor clara, branco a amarelos, por vezes cinza-claro, a que denominamos de cimento. Os primeiros são formados por óxidos e hidróxidos de ferro, conhecidos como hematita e goethita e o cimento fosfatos de alumínio, como crandallita-goyazita, (CaSr)Al3(PO4)2(OH)5.(H2O), entre outros. Ah! Esta rocha como um todo é conhecida como crosta laterítica fosfática.

ATAQUES EROSIVOS – Mas a sua história não termina aí. Ela foi posteriormente invadida por minerais de cor verde a verde-escura, na forma de fosfatos de ferro, como dufrenita, Fe2+Fe3+4(PO4)3(OH)5.2(H2O), mitridatita, Ca2Fe3+(PO4)3O3 .3(H2O), beraunita, Fe2+Fe3+5(PO4)4(OH)5.4(H2O), sem falar em outros mais exóticos ainda. A presença de uma crosta laterítica indica que a região em que a rocha se formou está em terra firme e sob condições de clima tropical quente e úmido, fazendo com que outras rochas pré-existentes, sofressem intensa alteração química e mineralógica e se transformassem basicamente em óxidos e hidróxidos de ferro, mencionados anteriormente, minerais de argila e por vezes fosfatos de alumínio, como a crandallita-goyazita. O endurecimento do material de alteração por sua vez indica que depois de clima quente e úmido a região experimentou mudanças climáticas para condições quentes e secas, prolongadas. Por outro lado a modificação da rocha por fosfatos de ferro como dufrenita, mitridatita, em que o elemento ferro se encontra reduzido para o Fe2+, portanto em seu estado de oxidação mais baixo, mostra que a crosta laterítica tornou–se substrato de ambiente lacustre e/ou de pântano, por longo tempo também. Este ambiente é capaz de reduzir o ferro, ao criar um ambiente anaeróbico, desprovido de oxigênio. Portanto ela tem uma longa história, que não transparece ao ser humano, sem uma formação científica específica, como um geólogo. A história não termina por ai. Para esta rocha já alterada ser encontrada hoje como uma ilha, isolada, de tudo e de todos, é porque a região em que ela dominava sofreu ataques erosivos intensos, deixando apenas alguns remanescentes. Em seguida a mesma região como um todo foi rebaixada ou o nível do mar subiu, o que foi o mais provável. Nos últimos 10.000 anos o nível do mar subiu até mais de 100m, alagando muitas terras firmes a exemplo do litoral do Pará e do Maranhão. A Pedra Grande do Gurupi é, portanto, uma conseqüência da subida do nível do mar e consequentemente inundação permanente das terras costeiras mais baixas, como se vê ainda atualmente.

Mas por outro lado os moradores e pescadores da região acreditam que esta ilha seja encantada e nossa história geológica não faz o menor sentido. Em suas falésias eles reconhecem nas rochas esculpidas pelo mar, um corpo no formato de um “PretoVéio”, que defende a ilha dos maus espíritos, dos visitantes inoportunos, como nos tempos atrás, embora não nos consideremos como tal. Este Preto Veio está ao lado de uma caverna aberta na parede da rocha solapada pelas ondas do Oceano Atlântico. Segundo esse pessoal, quem visita a ilha deve levar e depositar prendas junto ao Preto Veio. Do contrário sofrerá as penalidades cabíveis, penalidades estas severas como mau tempo e transtornos na viagem de volta. Nós mesmos estivemos na ilha por duas vezes e nunca fizemos depósitos de oferenda, mas fomos sempre muito respeitosos. No entanto coletamos várias amostras de rochas para estudo. E não é que na última visita ficamos à deriva na costa entre o rio Gurupi e a Ilha de Itacupim, sem suprimentos, quiçá de água potável. A água da chuva nos ajudou. Passamos apertados e tememos pelas nossas vidas. Teria sido uma vingança do Preto Veio, um encantamento da Pedra Grande do Gurupi?

A LÓGICA DO PESCADOR – Mas o povo da região não acredita muito nesta história de geólogos, alias, nem sabem exatamente o que fazem, e nem mesmo se existe. Ele tem outra versão para a origem da ilha. Instado a falar sobre a origem da ilha, um veterano pescador da região, da desembocadura do rio Gurupi, em plena noite de luar no trapiche de Viseu, assim nos explicou a origem da ilha.

- Doutor, antigamente essa pedra não estava aqui não. Ela veio de muito longe. Ela veio de rio acima, veio descendo o rio devagarzinho, devagarzinho, quase sem a gente perceber, e ai ela encalhou nestas terras rasas de muito areia do rio Gurupi, e ai ficou – Uma explicação simples não? E aparentemente sem nexo não é?  Pois paramos para pensar, e pensamos, pensamos, puxamos nosso conhecimento geológico da região como um todo e finalmente chegamos a uma conclusão, a um quadro lógico, que explicava facilmente a lógica de nosso pescador. E como tinha lógica! A rocha que constitui a Pedra Grande, a crosta laterítica, está praticamente ausente da região da desembocadura do rio Gurupi, só ocorre nesta ilha, no entanto é comum rio acima, em suas margens e nos terrenos de terra firme próximos a ela. O pescador sabendo disto, pois é gente viajada e desbravadora da redondeza, de muita conversa, concluiu que para esta rocha estranha estar aqui na desembocadura de um grande rio, sozinha, sem parentes e aderentes, e tendo somente ocorrência rio acima, é porque ela descera rio abaixo. Descera “buiando”, boiando. A pedra enorme de160m de comprimento, descera boiando o rio, de bubuia, sim senhor! Estava explicada de forma simples a origem da ilha. Ele explicava isso com a convicção de um cientista munido de milhares de dados e experimentos Agora não pergunte se isso é possível do ponto de vista da física? Claro que não? Como uma rocha com densidade em torno de 3,5g/cm3 poderia flutuar ou boiar na água com densidade mais baixa, 1,0 g/cm3? Isto não importa e não vem ao caso. Ou vem? O certo é que a pedra está ali, durinha, durinha, enfrentando o rio e o mar, soberbamente. Ela está ali como a Pedra Grande do Gurupi. Para os geólogos a história é a outra, contada acima, que parece mais real, mas a historiado pescador nos parece mais bonita, simples e fabulosa, não é? É história de pescador mesmo, gente da nossa gente. É também o desenvolvimento de uma cultura, de um pensador que não tendo uma ciência como pano de fundo, desenvolve a sua própria lógica e que lógica.

CAMINHOSPARA APROFUNDAMENTOS
·         Costa, M. L & Souza,V.S..1991. O Encanto da crosta lateritica da Pedra Grande. Anais do III Simpósio de Geologia da Amazônia. Belém, Pará, p495-511.
       
Fonte: Jornal O Liberal. Encarte Amazônia. Ilha Encantada – A Pedra Grande do Gurupi. Belém, Pará, ano 2009. pag. 21-23.



[1] Marcondes Lima da Costa - é geólogo, mestre, doutor e pósdoutor em mineralogia e geoquímica, Professor da UFPA.

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