A ILHA
ENCANTADA – A Pedra Grande do Gurupi
Marcondes
Lima da Costa[1]
Na desembocadura do rio Gurupi, na
fronteira Pará-Maranhão, existem inúmeras ilhas e uma delas e muito distinta
das demais, é uma ilha de pedra, uma pedra escura exótica, que emana daquele
mundo de água, tendo em sua retaguarda o verde da floresta de mangue e o branco
das praias e bancos de areia. É a Pedra Grande do Gurupi. Como se percebe o seu
nome é uma direta alusão a sua constituição em pedra, e pedra grande, e a sua
localização junto a desembocadura do rio Gurupi. As outras ilhas são bancos de
areia e lama. A Pedra Grande já havia sido até local para farol de navegação.
Seus escombros antes de ir para lá quando de nossa ultima visita nos anos de 1980. A ilha-pedra tem 160 m de comprimento e na
maré fica cercada de bancos de areia. Seu topo é plano, com algumas touceiras
de gramíneas resistentes ao sol, ondas e água salina, a tão propalada e temida
maresia. A superfície é plana e rugosa, cheia de cavidades e caldeirões. Nestes
podem acumular água do mar, que deixa o fundo cravejado de belos cristais
milimétricos e cúbicos de halita, NaCl, o sal de cozinha, formados pela
evaporação da água. A água do mar chega até o topo através do quebramento das
ondas, projetando-a para cima. Esses mesmos cristais de halita também são
encontrados em cavernas desenvolvidas nas paredes da ilha, particularmente em
uma delas, um verdadeiro refúgio ou abrigo. Suas paredes de crosta são
revestidas com cristais e agregados de gipso, um sulfato de cálcio hidratado,
CaSO4 .H2O, além de halita. Mas a Pedra Grande do Gurupi é uma rocha
incomum, estranha na região. Tem cor avermelhada e marrom, mas que está
enegrecida superficialmente por liquens e intempéries em geral. Sob esta
película escura se destaca uma rocha (termo geológico para a pedra) de aspecto
pisolítico (formado por componentes esféricos ou esferolíticos com camadas
concêntricas) a brechóide (como se estivesse toda quebrada). Os esferolitos e
fragmentos têm cor marrom a vermelha e são envolvidos por material de cor
clara, branco a amarelos, por vezes cinza-claro, a que denominamos de cimento.
Os primeiros são formados por óxidos e hidróxidos de ferro, conhecidos como
hematita e goethita e o cimento fosfatos de alumínio, como crandallita-goyazita,
(CaSr)Al3(PO4)2(OH)5.(H2O),
entre outros. Ah! Esta rocha como um todo é conhecida como crosta laterítica
fosfática.
ATAQUES EROSIVOS – Mas a sua história não termina aí. Ela
foi posteriormente invadida por minerais de cor verde a verde-escura, na forma
de fosfatos de ferro, como dufrenita, Fe2+Fe3+4(PO4)3(OH)5.2(H2O),
mitridatita, Ca2Fe3+(PO4)3O3 .3(H2O),
beraunita, Fe2+Fe3+5(PO4)4(OH)5.4(H2O),
sem falar em outros mais exóticos ainda. A presença de uma crosta laterítica
indica que a região em que a rocha se formou está em terra firme e sob
condições de clima tropical quente e úmido, fazendo com que outras rochas
pré-existentes, sofressem intensa alteração química e mineralógica e se
transformassem basicamente em óxidos e hidróxidos de ferro, mencionados
anteriormente, minerais de argila e por vezes fosfatos de alumínio, como a
crandallita-goyazita. O endurecimento do material de alteração por sua vez
indica que depois de clima quente e úmido a região experimentou mudanças
climáticas para condições quentes e secas, prolongadas. Por outro lado a
modificação da rocha por fosfatos de ferro como dufrenita, mitridatita, em que
o elemento ferro se encontra reduzido para o Fe2+, portanto em seu
estado de oxidação mais baixo, mostra que a crosta laterítica tornou–se substrato
de ambiente lacustre e/ou de pântano, por longo tempo também. Este ambiente é
capaz de reduzir o ferro, ao criar um ambiente anaeróbico, desprovido de oxigênio.
Portanto ela tem uma longa história, que não transparece ao ser humano, sem uma
formação científica específica, como um geólogo. A história não termina por ai.
Para esta rocha já alterada ser encontrada hoje como uma ilha, isolada, de tudo
e de todos, é porque a região em que ela dominava sofreu ataques erosivos
intensos, deixando apenas alguns remanescentes. Em seguida a mesma região como
um todo foi rebaixada ou o nível do mar subiu, o que foi o mais provável. Nos
últimos 10.000 anos o nível do mar subiu até mais de 100m, alagando muitas
terras firmes a exemplo do litoral do Pará e do Maranhão. A Pedra Grande do
Gurupi é, portanto, uma conseqüência da subida do nível do mar e
consequentemente inundação permanente das terras costeiras mais baixas, como se
vê ainda atualmente.
Mas por outro lado os moradores e
pescadores da região acreditam que esta ilha seja encantada e nossa história
geológica não faz o menor sentido. Em suas falésias eles reconhecem nas rochas
esculpidas pelo mar, um corpo no formato de um “PretoVéio”, que defende a ilha
dos maus espíritos, dos visitantes inoportunos, como nos tempos atrás, embora
não nos consideremos como tal. Este Preto Veio está ao lado de uma caverna
aberta na parede da rocha solapada pelas ondas do Oceano Atlântico. Segundo esse
pessoal, quem visita a ilha deve levar e depositar prendas junto ao Preto Veio.
Do contrário sofrerá as penalidades cabíveis, penalidades estas severas como
mau tempo e transtornos na viagem de volta. Nós mesmos estivemos na ilha por duas
vezes e nunca fizemos depósitos de oferenda, mas fomos sempre muito
respeitosos. No entanto coletamos várias amostras de rochas para estudo. E não
é que na última visita ficamos à deriva na costa entre o rio Gurupi e a Ilha de
Itacupim, sem suprimentos, quiçá de água potável. A água da chuva nos ajudou.
Passamos apertados e tememos pelas nossas vidas. Teria sido uma vingança do Preto
Veio, um encantamento da Pedra Grande do Gurupi?
A
LÓGICA DO PESCADOR – Mas o povo da região não acredita muito nesta história de
geólogos, alias, nem sabem exatamente o que fazem, e nem mesmo se existe. Ele tem
outra versão para a origem da ilha. Instado a falar sobre a origem da ilha, um
veterano pescador da região, da desembocadura do rio Gurupi, em plena noite de
luar no trapiche de Viseu, assim nos explicou a origem da ilha.
-
Doutor, antigamente essa pedra não estava aqui não. Ela veio de muito longe. Ela
veio de rio acima, veio descendo o rio devagarzinho, devagarzinho, quase sem a
gente perceber, e ai ela encalhou nestas terras rasas de muito areia do rio
Gurupi, e ai ficou – Uma explicação simples não? E aparentemente sem nexo não é? Pois paramos para pensar, e pensamos, pensamos,
puxamos nosso conhecimento geológico da região como um todo e finalmente
chegamos a uma conclusão, a um quadro lógico, que explicava facilmente a lógica
de nosso pescador. E como tinha lógica! A rocha que constitui a Pedra Grande, a
crosta laterítica, está praticamente ausente da região da desembocadura do rio Gurupi,
só ocorre nesta ilha, no entanto é comum rio acima, em suas margens e nos
terrenos de terra firme próximos a ela. O pescador sabendo disto, pois é gente
viajada e desbravadora da redondeza, de muita conversa, concluiu que para esta
rocha estranha estar aqui na desembocadura de um grande rio, sozinha, sem
parentes e aderentes, e tendo somente ocorrência rio acima, é porque ela descera
rio abaixo. Descera “buiando”, boiando. A pedra enorme de160m de comprimento, descera
boiando o rio, de bubuia, sim senhor! Estava explicada de forma simples a
origem da ilha. Ele explicava isso com a convicção de um cientista munido de
milhares de dados e experimentos Agora não pergunte se isso é possível do ponto
de vista da física? Claro que não? Como uma rocha com densidade em torno de 3,5g/cm3
poderia flutuar ou boiar na água com densidade mais baixa, 1,0 g/cm3?
Isto não importa e não vem ao caso. Ou vem? O certo é que a pedra está ali, durinha,
durinha, enfrentando o rio e o mar, soberbamente. Ela está ali como a Pedra
Grande do Gurupi. Para os geólogos a história é a outra, contada acima, que
parece mais real, mas a historiado pescador nos parece mais bonita, simples e fabulosa,
não é? É história de pescador mesmo, gente da nossa gente. É também o desenvolvimento
de uma cultura, de um pensador que não tendo uma ciência como pano de fundo, desenvolve
a sua própria lógica e que lógica.
CAMINHOSPARA
APROFUNDAMENTOS
·
Costa,
M. L & Souza,V.S..1991. O Encanto da crosta lateritica da Pedra Grande. Anais do III Simpósio de Geologia da
Amazônia. Belém, Pará, p495-511.Fonte: Jornal O Liberal. Encarte Amazônia. Ilha Encantada – A Pedra Grande do Gurupi. Belém, Pará, ano 2009. pag. 21-23.
[1] Marcondes Lima da Costa - é geólogo,
mestre, doutor e pósdoutor em mineralogia e geoquímica, Professor da UFPA.
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